Gente-de-fora-vem-aí


Dia perfeito. Sem sol, sem chuva, pouco vento, pouco frio, sem calor, sem mormaço, sem chuvisco. Perfeito. Acordei disposto, fiz tudo o que tinha que fazer, atendi meus clientes diários, e vivi mais uma rotineira manhã. Mas o melhor aconteceu à tarde.

Como havia terminado tudo mais cedo, resolvi fazer o que há muito tempo não fazia, não lembrava que era tão bom andar de bicicleta. Passei horas e horas pedalando, nem senti nada, parecia aquele menino que um dia fui. Quando parei, sentei no banco daquela praça cinzenta e deserta. Voltei algum tempo, vi tudo como se estivesse passando um filme em minha frente. Todos nos seus devidos lugares, as gargalhadas, as fotografias, a inocência nos rostos, a coisa toda. Os atos, gestos, até as palavras, tudinho, tudinho. Aquela tarde tinha tudo para ser um desastre, mas não foi, não a tarde. A conseqüência que aquela tarde me traria sim, um desastre. Talvez eu esteja sendo extremo demais, mas que as conseqüências não foram boas, ah, não foram. Por todo esse tempo neguei, mas no fundo eu sabia que estava preso àquele momento. Talvez não o momento, mas ela. Ela me prendera de tal forma que quase enlouqueci ao seu lado. Naquela tarde tudo estava calmo, calmo demais até, todos a esperando. Eu nem sabia que a conheceria naquele dia, para mim ela era só mais uma que passaria a minha frente. Até chegar... Chegou. Uma figura interessante, um olhar firme, olhos lindos, cor de mel, convicção era o que ela passava. Um ar de superioridade que só nela vi. Um espírito anarquista que gritava. O que pensei que passaria despercebido marcou. Muito educada cumprimentara todos, a maioria já a conhecia, eu não. Puxei um papo, não fui bem sucedido, era pouco pra ela. O que ela era, o que fazia, o que pensava, era muito para aquela gente. Todos muito superficiais, fracos e sem capacidade de raciocínio. A tarde passou, ela se foi, pensei que nunca mais a veria.

Até o dia que a vi passando na rua, não podia perder aquela oportunidade, fui ao seu encontro e perguntei se lembrava de mim, ela lembrara, conversamos muito, ao seu lado nem vi o tempo passar. Ela me cativara de maneira indescritível. A partir desse dia nos víamos regularmente, sua companhia era o que me bastava, seu sorriso me encantava, seus ideais e seus objetivos me fascinavam. Ela era o meu vício, e os outros, eram apenas os outros. Por meses e meses as minhas tardes resumiam-se a ela. Até o momento que declarei meu amor por ela. Sua reação foi inversa a que eu esperava. Eu, o cara que nunca precisou de muito para ter alguém, que nunca se apaixonara verdadeiramente, desprezado. Ela veio com aquela historinha clichê que todas contam: “Somos amigos, não vamos misturar, tenho medo de perder sua amizade...” Nesse momento a vi como vejo todas. Só mais uma. Uma qualquer... Qualquer que ainda me fascinava, que cada vez mais me encantava. Eu não sabia o que fazer, mesmo desprezado precisava dela, como disse antes, ela era o meu vício. Ela não correspondia a minha amizade, tudo acabara ali, eu a queria por perto, ela queria distância.

Mudou-se. Viajou, nunca mais ouvi sequer falar dela. Não a vi ir, ela não fazia questão, foi melhor. Mas o pior foi a falta que ela me fez. Meus dias não acabavam, as pessoas já não me importavam, meus clientes eram nada. Tudo era nada, o mundo já não era o mesmo. Depois dela, nada mais me completava, mas eu tinha que ir em frente... Aqui estou sobrevivendo nesse mundo fedorento e colorido.

Um comentário:

Miguel Sacri dos Anjos disse...

Ah, que saudade de ler estes textos ^^

Bonito, Marcela. Muito bonito.